TEMPOS ESTRANHOS
Depois de tanto tempo distante da escrita retorno em dois tempos:
-O primeiro, sobre a atual situação de insegurança e desconfiança institucional;
-O segundo, sobre a prisão de meu falecido pai, quando vereador em 1964, por possuir no local em que morava, livros Marxistas.
No dia 16 de Outubro de 2021, fiz minha estréia como colaboradora do Jornal Pedra de Fogo. É bom que se diga, com muito orgulho e muita alegria. Pois bem, não posso então deixar de registrar aqui a perseguição e retaliação pela qual Chu Arroyo, responsável pelo jornal vem sofrendo. Para tanto, registrarei aqui o meu apoio ao Chu, juntando a minha modesta postura aqui na página à manifestação formal da Federação de Jornalistas de Língua Portuguesa ( Angola, Brasil, Cabo Verde, Goa, Guiné Bissau, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste) no Ofício out/2021 às Autoridades Internacionais e aos membros titulares das representações filiadas à FJLP
Eu deixo aqui o meu repúdio ao autoritarismo sob todas as suas formas, principalmente aquelas provenientes de instituições que existem tão somente para garantir o pleno exercício de informação bem como das liberdades constitucionais.
Pegando carona na questão político autoritária, vamos até o ano de 1964...
Waldemar
Geraldo da Motta
No ano de
2018 viajei para Itápolis em busca de minha família paterna. Conheci alguns
tios quando eu era muito criança. Meu avô paterno eu não conheci, pois ele havia
falecido em abril de 1964 e eu nasci em 1969. Minha avó teve tempo de
segurar-me ainda bebê em seu colo. Pouco tempo depois também faleceu. Em 2019,
enfurecida e revoltada com a vitória de Jair Bolsonaro, desanimada por todo o
retrocesso que sua vitória representava para a ordem democrática e o Estado de
Direito, aturdida por perceber o quanto a ignorância se agigantava na nossa
triste nação resolvi retornar a Itápolis para resgatar ao menos um pouco de meu
pai. O Motta. Uma robusta inspiração de fé na Democracia. Preto, pobre e
polêmico. Inteligentíssimo e com refinamento para concepções políticas. E foi
assim, em uma grande reunião da família Motta, com ressoares das timbas e
tambores que ecoavam chamando por ele, ao som de “Sonho meu! Sonho meu! Vá
buscar quem mora longe, sonho meu” que o Motta retornou de nossos poros
atendendo ao nosso chamado. Vertia ele de nossos suores. Suores dos ancestrais
amores nas matas. Suores de dores e temores dos porões de assombrosos navios
negreiros. Negros dias e noites.
Waldemar
Geraldo da Motta nasceu em 21 de setembro de 1933 na pequena Itápolis. Filho de
Francisca e Moisés, criado de forma muito simples dentro de uma família
conservadora e patriarcal, muito cedo se rebelava aquele menino de sorriso
fácil e olhos vibrantes contra o sistema de exploração econômica, desigualdade
social, opressão e intolerância religiosa.
De oratória
brilhante, corpulenta e argumentação apurada, aquele menino começava a gostar
da política. Sem condições para estudar debruçou-se sobre livros e jornais em
verdadeira saga, incansavelmente. Lia de tudo. Entre seus catorze e dezesseis
anos de idade ele saiu de casa e veio para Lençóis Paulista. Rumores apontam
para a possibilidade de que naquela época já fosse o menino Motta, pelo seu
comportamento desafiador do sistema, um provável “problema” para a sua família,
posto em evidência o seu temperamento questionador e turbulento. Destemido por
excelência de lá vinha o garoto para trabalhar na antiga tinturaria do senhor
Luís Duarte.
Aguerrido e
impulsivo, tratou logo de conhecer os redutos politizados ao longo do tempo na
Lençóis “princesa dos canaviais”. Alinhado com a nata dos idealistas militantes
da época cresciam seus princípios de bases socialistas e trabalhistas. E o guerreiro
amadurecia.
Militante do
MDB varria a cidade com seus comícios acalorados. Suas palavras por vezes duras
envoltas em sua voz grave davam singularidade à sua figura pequena, que
estranhamente aumentava brutalmente quando pisava com respeito o sagrado
palanque. Em uma das mãos o microfone demonstrava o quanto para ele aquilo era
de fato uma tribuna ilustríssima para o mais importante lugar de fala. Em sua
outra mão, seus gestos firmes e convictos não eram menos eloquentes que sua
boca de batalhas mil. Seu grande amor, a política. A política sempre foi a sua
perdição e a sua redenção. Sua paixão e salvação. Misturados com a sua
personalidade boêmia davam ao Motta um carisma muito peculiar.
Foi eleito
vereador por três vezes. A primeira em 1963; a segunda vez na eleição de 1976 e
a terceira em 1982, juntamente com o prefeito Ideval Paccola. O município dava
os seus primeiros passos sem as amarras dos grandes grupos econômicos
dominantes da cidade. Víamos a administração local voltada para as questões
sociais.
Um homem de
combates, de espírito vermelho, de valentia flamejante capaz de desconcertar
qualquer opositor. Entre amigos de igual postura lá ia ele entre os locais da
Rua XV de Novembro, com um carinho todo especial para com o senhor João
Germino, saudoso proprietário do inesquecível Bar do Chope. Em reuniões
intermináveis na calada da noite, o militante dentro dele como que forjado pela
espada do Arcanjo Miguel e esculpido pelos machados de Xangô, se fortalecia.
No mês de
maio de 1964, em plena ditadura militar mediante denúncia e com base em uma
lista de suspeitos de subversão, existente na delegacia de polícia local, o
Motta foi detido. Preso por ter no quarto em que ele morava dois livros de
doutrina Marxista. Era vereador nessa época. As agruras do nefasto regime
atingiram o guerreiro negro.
Minha mãe
ainda hoje conta que quando namoravam meu pai ficou muito tempo desaparecido.
Provavelmente por perseguição do regime ditatorial, devido aos seus
posicionamentos sempre contundentes. Tal assunto ficou guardado, velado e
restrito em nossa casa por muitos e muitos anos. Creio que tenha partido dele o
silêncio, para nos proteger e nos poupar, já que depois que do casamento
ficaram vivendo na casa de meus avós maternos aqui em Alfredo Guedes. E
novamente o Motta se via no seio de uma família de direita e conservadora. Eu
me recordo de alguns de seus discursos. Eram verdadeiros folguedos. Em meados
dos anos de 1970 e 1980, eu me lembro de algumas vezes ver em nossa casa o Dr.
Luciano Bernardes Filho, Edvaldo Bianchini entre outros. Minha mãe também me
conta que eu ainda muito pequena tinha por ídolo o Lucianinho Bernardes e que
era absurdamente evidente a empolgação e o entusiasmo que eu sentia quando o
Dr. Luciano discursava.
No Livro de
Ata das Sessões da Câmara Municipal de Lençóis Paulista, referente ao período
de 1963 a 1965, encontram-se todas as menções à prisão de meu pai. Detido por
ser inteligente, questionador, crítico das atrocidades do estado, sensível
diante dos abusos de ordem trabalhista e inconformado com a realidade do
racismo. Um homem a frente de seu tempo.
Vendendo cortes
de tecidos na Pernambucana, cortava o seu destino e o nosso também através da entidade
viva que é a política. Um café no Bar do Chope que ficava logo ali pertinho da
loja, um cumprimento de “boa tarde” na quitanda da Tereza, japonesa do sorriso
largo vagando vaporoso sob o cheiro das maçãs argentinas em suas bandejas cor
de violeta, um abraço na querida amiga dona Leda e um conselho de Alexandre
Chitto preenchia as suas manhãs e tardes. E o Geraldo Motta ia e vinha todos os
dias de trem. Seguia trabalhando em Lençóis e morando no Distrito de Alfredo Guedes
que adotou como sua terra, sua gente e seu porto seguro.
Antes disso
houve uma época em que trabalhou no histórico Bar Guarani, no Bar da Estela... Nas
quintas de folga me levava com ele de trem para Lençóis. E eu muito pequenina
via pelas primeiras vezes o entusiasmo que ferve nas ruas por mudanças, e como
o cheiro dos bares se mistura ao perfume de esperança que move o povo que grita
orações de reivindicações.
Boêmio que
era dedilhava violões pelas madrugadas com seus amigos de várias idades. A voz
que me ensinava o valor da liberdade era a mesma que cantava Amapola de
Gregório Barrios. O pai que tinha o bolero cravado nos pés era o mesmo que
contrariava a ordem para a educação das meninas e afirmava que eu não precisava
ter filhos se eu não quisesse. Que eu só deveria me casar se assim desejasse,
mas que isso não deveria fazer de mim uma pessoa solitária. Nunca deixou que
nenhuma amarra me pegasse ou prendesse nenhum de meus anseios. E era essa a
liberdade de escolha que ele sempre desejou que sua gente tivesse. E sei que
deseja ainda. Seu legado é o da liberdade. A luta que demonstra não haver
diferenças entre raças, gênero ou classe social.
Foi com essa
liberdade de acertar e de errar que eu sempre toquei minha vida. Foi com a
certeza de saber que eu poderia fazer qualquer coisa que um homem fizesse sem
que isso me diminuísse. Ele me podou os medos. E deixou como herança para o
povo essa mesma poda de temores.
O político e
boêmio mesclava o amor mariano à força dos orixás. Por isso quando rezo, choro
de joelhos nos altares de Nossa Senhora pisando descalça o seu chão. Mas danço
para Iansã nos dias de tempestades. Submeto-me e tremo por Ogun, grande general
da Umbanda, emociono-me profundamente na brancura reluzente das mesas
kardecistas que clamam a Jesus, reverencio os atabaques de meu sangue negro,
sangue do Motta e me encho de esperanças ao som das Aves Marias. Agradeço com
respeito e ternura os pretos velhos que me acompanham. Como ele, que mesmo
preso, injustiçado e perseguido, vou me negando ao pessimismo e sigo
acreditando que a política seja sim sagrada, uma poderosa ferramenta de poder
de transformação da realidade e das vidas das pessoas. É preciso suprimir o
excesso de regras e fanatismo e substituí-lo por amor à vida. O Motta se foi em
março de 2001, levando com ele várias conquistas para Alfredo Guedes,
ressaltando o imenso orgulho de ter trazido a vicinal, o tão esperado asfalto
na estrada que liga a Rondon e que hoje leva o seu nome. Velado na Câmara
Municipal com as honras que fizera por merecer, lá se ia novamente o Motta de
perfil guerreiro para outras messes, mas não sem antes dizer para que o povo não
se curve. E olhando para o seu corpo ali, já com a sua presença ao meu lado,
meus ouvidos percebiam seu sussurro: “Eu jamais abandonei os meus livros fossem
de quaisquer doutrinas inclusive a dialética marxista”. E eu só pensava: “Viva
a liberdade e viva Democracia”!
E para
homenageá-lo, além de trazê-lo aqui, convido: Vamos assistir Marighella?
Célia Regina Motta